
Claúdio Salles
O Pacto de 88 e o Definhamento da República
Reproduzimos em nosso site o artigo publicado hoje, no Blog da Ciência e Matemática, do O GLOBO, escrito pelo sociólogo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor da Escola de Direito da PUCRS, e pesquisador do INCT-InEAC .
O Pacto de 88 e o Definhamento da República
31/08/2020
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Certos integrantes da esquerda política que militam em redes sociais sofrem, desde que Lula foi preso, da síndrome de Causa Operária. Quando exerceram e exercem funções de governo, em municípios, estados e no país, os representantes da esquerda eleitos não consideram problema privatizar empresas e serviços públicos, quando financeiramente interessante para a gestão pública e a prestação do serviço, embora sem a voracidade de outros grupos políticos ditos neoliberais. Também não hesitam em enfrentar demandas corporativistas de servidores públicos, na difícil arte de equilibrar as finanças e ter algum recurso para a prática de políticas públicas. Muito menos de se aliar com um amplo espectro político, tendo em conta a necessidade de governabilidade e composição de maiorias parlamentares, e com um filtro bastante permeável a representantes da velha guarda da política brasileira, formada no coronelismo e no regime militar, e adepta do toma lá da cá e do clientelismo como meio de obtenção de apoio eleitoral.
Com a judicialização da política, a condenação de Lula e o impeachmente de Dilma, passaram, justificadamente, a desmerecer o valor do que foi conquistado, no plano normativo, desde a transição democrática, e que caracteriza o Brasil, em tese, como país submetido a uma democracia social-liberal.
É preciso que a esquerda supere esse legítimo ressentimento, para voltar a ter relevância no debate político, com propostas efetivas para governar as diferentes instâncias de gestão pública. Em que pese todos os malabarismos processuais que levaram à condenação de Lula e de outras lideranças petistas, e que agora vem sendo pouco a pouco reconhecidos (tardiamente), em alguns casos, pelas altas instâncias judiciais, fato é que houve práticas de apadrinhamento e conivência com desvios, houve erros por falta de prioridade política para questões chave, como a segurança pública e a reforma administrativa, houve falta de capacidade para atualizar o programa político no andar da carroça, assumindo o papel e o lugar de uma esquerda democrática e reformista.
Mas o maior de todos os equívocos talvez tenha sido a incapacidade de compreender que o grande desafio no Brasil até hoje é o da colocação em prática dos princípios republicanos, em uma República ainda inconclusa, pela afirmação do direito à igualdade, como reconhecimento da dignidade humana de cada um e de cada uma, como a própria noção de cidadania, pela incorporação das demandas de reconhecimento das questões relacionadas com desigualdades de gênero, desigualdades raciais/étnicas, ou com demandas de reconhecimento de grupos vulnerabilizados por uma cultura machista, conservadora e própria de uma sociedade piramidal, na qual os indivíduos não se reconhecem como iguais em direitos, não para estabelecer novos privilégios, mas para garantir o acesso ao tratamento igualitário pelo Estado.
Como já foi dito em artigo neste blog, publicado em 11 de maio deste ano, de autoria de Roberto Kant de Lima, Pedro Heitor Barros Geraldo e Fábio Reis Mota, há um déficit de direitos civis no Brasil, que se refere à igualdade de direitos dos cidadãos no exercício de suas liberdades. Pesquisas que vem sendo desenvolvidas no âmbito do INCT-InEAC apontam a naturalização da segmentação da sociedade brasileira em partes desiguais pelo sistema jurídico, não apenas por critérios econômicos (de classe), como em outros países capitalistas, mas também pela falta de reconhecimento de direitos individuais para amplos grupos, possivelmente fruto do passado imperial e escravista.
A utilização do sistema penal para atingir politicamente os governos petistas, no estilo lawfare, serviu para dar visibilidade a um tema que precisa ser enfrentado, para que a democracia possa ser exercida, como exercício das liberdades democráticas (inclusive a presunção de inocência), com a afirmação do direito de defesa e do devido processo legal, e mesmo o enfrentamento de uma forma de fazer política de segurança pública por meio da violência policial sem controle e seletiva, e de uma investigação e um processo penal incapazes de assegurar o direito ao contraditório, salvo para aos integrantes dos estratos superiores, quando eventualmente encaminhados à justiça penal.
Reconhecer a importância desse desafio e atuar para modificar essa realidade implica em reconhecer a relevância do Poder Judiciário para dar efetividade aos direitos sociais e individuais no Brasil, e ao mesmo tempo reconhecer que há barreiras importantes fruto de uma cultura jurídica bacharelesca e inquisitorial, reproduzida em cursos de direito nos quais se enfatiza que seu papel não é o de dar acesso e garantir igualmente os direitos, mas de distribuí-los desigualmente, para não alterar a composição juridicamente piramidal da sociedade, em nome da necessária manutenção de uma ordem naturalmente desigual e piramidal.
No início do seu primeiro mandato, Lula, que afirmava quando candidato que o judiciário era uma “caixa preta”, com a participação de Márcio Tomaz Bastos como Ministro da Justiça, banca e aprova, ainda em 2003, a Emenda Constitucional 45, da Reforma do Poder Judiciário. A aprovação, no entanto, dependeu de acordos políticos no Congresso que reduziram em muito a sua abrangência, permitindo a criação de um órgão de correição e planejamento, o Conselho Nacional de Justiça, mas dando o controle do órgão à magistratura. Embora seja inegável a presença do CNJ como ator importante do diagnóstico e do debate sobre as reformas do Poder Judiciário, está ainda muito aquém de uma capacidade efetiva de enfrentar os privilégios e o corporativismo da magistratura e estabelecer um padrão de decisões judiciais vinculadas ao exercício das liberdades fundamentais em matéria de execução penal. De todo modo, tanto o CNJ quanto uma maioria significativa no Supremo Tribunal Federal tem atentado para a falência da estrutura carcerária e para a necessidade de limitar o exercício do poder punitivo às regras procedimentais próprias do modelo acusatório, revertendo uma tendência de ceder ao punitivismo e à lógica inquisitorial ainda em vigor nas práticas das instituições policiais e judiciais.
Neste momento, importantes espaços de poder político são ocupados pelo discurso bolsonarista, caracterizado em matéria de segurança pública pelo chamado populismo penal, ou seja, um discurso de endurecimento penal direcionado a determinados tipos de crime e de criminoso (o aborto, a corrupção da esquerda, os crimes contra os costumes), e pela falta de compromisso com o funcionamento republicano das instituições de justiça e segurança (vide a tentativa de interferência na cúpula da Polícia Federal do Rio de Janeiro e o dossiê produzido dentro do setor de inteligência do Ministério da Justiça para mapear e identificar policiais antifascistas e intelectuais “influenciadores”).
"Quintas no Scriptorium"
As "Quintas no Scriptorium" estão de volta com uma mesa-redonda imperdível sobre o gênero no medievo: SEMPRE CULPADA - O IMAGINÁRIO CRISTÃO SOBRE A SEXUALIDADE FEMININA . A APRESENTAÇÃO É DA PROFESSORA LANA LAGE (UFF/UENF - INCT/INEAC). Dia 20 de agosto , às 17 horas.
PARA INSCRIÇÕES ACESSE https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSe12GRrc75WchRksUO9RLsqTFNKL-JVZ1en8DkmKKBOp0oqkA/viewform
INTERFACES política criminal, segurança pública e processo penal com Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
O Giro Processual Penal inaugura mais um quadro, agora com entrevistas sobre política criminal, segurança pública e processo penal. A estreia foi com o Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (INCT/INEAC) , no dia 05/08, às 19:30. Quer saber mais sobre o Giro Processual Penal? Acessa o nosso site! https://giroprocessual.wixsite.com/we...
Para assistir acesse o link abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=D87QamQ0FrA&feature=youtu.be
"TER TRABALHO DÁ TRABALHO" : LUTA E RESISTÊNCIA DOS CAMELÔS NO RIO.
O Laboratório de Estudos sobre Conflitos, Cidadania e Segurança Pública (LAESP/UFF) recebe nessa quinta-feira, 06/08, a dirigente do MUCA, Maria dos Camelôs, liderança histórica daquele movimento, para conversar sobre os desafios de inserção dessas práticas, no ambiente urbano, em tempos de obscurantismo e da COVID-19. A apresentação é do antropólogo Lenin Pires (INCT/INEAC).
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A live será transmitida pelo canal do YouTube do LAESP (https://m.youtube.com/channel/UCj_o935DOIefEDlcXSoisGQ).
VIOLÊNCIA POLICIAL E SEGURANÇA PÚBLICA

Iº Ciclo de Debates sobre Segurança Pública, Justiça e Democracia.
Nessa sexta-feira, dia 24 de julho, acontece mais uma atividade do Iº Ciclo de Debates sobre Segurança Pública, Justiça e Democracia com o tema da agenda de pesquisa sociocriminológica no Brasil que será desenvolvida pelo pesquisador Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor da Escola de Direito da PUCRS, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do INCT-InEAC. Ele debaterá os estudos sobre conflitualidade social na sociedade contemporânea e o impacto das redes sociais, sobre as várias dimensões do sistema de segurança pública e justiça penal, desde a ação das polícias, passando pelo funcionamento da justiça e a execução penal, apresentando metodologias e resultados de pesquisa realizadas na última década.
Também tratará dos principais órgãos de fomento, quais os temas tem sido mais demandados e qual o impacto e as dificuldades criadas pela ascensão do bolsonarismo para essa agenda de pesquisa.
A atividade vai ser das 15 às 17h, com acesso pelo Zoom (ID 314 654 5727) e transmissão online pelo canal do GPESC no Youtube. https://www.youtube.com/c…/UCp20yK7n3BtWVgV45BFbGfQ/featured
PODCAST - Guilhotina #75 – Marcelo da Silveira Campos
Podcast do Le Monde Diplomatique Brasil traz a presença do sociólogo Marcelo da Silveira Campos (INCT/INEAC), autor do livro “Pela metade: a lei de drogas do Brasil”. Neste episódio ele explica o processo de transformação de usuários em traficantes desde a alteração da lei de drogas. Ouça em seu player favorito ou nesta postagem.
https://diplomatique.org.br/guilhotina-75-marcelo-da-silveira-campos/
https://content.blubrry.com/central3_podcasts___xadrez/Guilhotina_17julho_.mp3
Encontros Leme discute o legado de Simoni Guedes
O Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte realizará, no dia 17 de julho de 2020, às 19h, a quinta edição dos Encontros LEME em 2020. Dessa vez, faremos uma edição especial em homenagem à Simoni Guedes.
Para falar do legado da saudosa antropóloga, contaremos com a presença de Luiz Henrique de Toledo, Rosana da Câmara Teixeira, Nicolás Cabrera e Filipe Mostaro.
Por conta da pandemia, os Encontros estão sendo realizados na modalidade virtual. Para essa edição, faremos uma transmissão ao vivo, em nosso canal no Youtube, link: https://www.youtube.com/watch?v=-kKolQl9xWo
Ao contrário dos outros Encontros, não será necessário se inscrever previamente dessa vez, já que a transmissão será aberta. Não se esqueça de seguir nosso canal e ativar as notificações para ficar por dentro de tudo que postamos lá.
Encontros LEME é uma proposta do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte que visa, a partir da leitura de textos e análise de produções fílmicas, realizar debates com professores, pesquisadores, graduandos e convidados interessados em estudar as interseções da Comunicação com o Esporte.

Biopoder, pandemia e democracia (por Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Fernanda Bestetti de Vasconcellos)
Reproduzimos em nosso site o artigo publicado no site SUL21 de autoria do sociólogo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor da Escola de Direito da PUCRS, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do INCT-InEAC.
Biopoder, pandemia e democracia (por Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Fernanda Bestetti de Vasconcellos)
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Fernanda Bestetti de Vasconcellos (**)
A pandemia de Covid-19, iniciada na província de Wuhan, na China, no final do ano de 2019, e rapidamente disseminada pelo mundo, já havia causado, no início do mês de julho de 2020, mais de 10 milhões de infectados confirmados, e 500 mil mortes em todo o planeta. Os EUA, com 130 mil mortos, e o Brasil, com 60 mil, não por acaso dois países governados pelos mais estridentes representantes de uma nova direita populista, eram as nações com maior número de mortes àquela altura.
Desde que o vírus demonstrou sua letalidade, a grande maioria dos países, seguindo a orientação da Organização Mundial da Saúde, adotou estratégias de isolamento social, orientando os cidadãos a permanecerem o maior tempo possível em seus domicílios e determinando o fechamento de escolas de universidades, do comércio e de todas as demais atividades não essenciais, como forma de tentar conter o avanço da pandemia. Graças a isso, países como China, Alemanha, Nova Zelândia e Argentina destacaram-se pela capacidade de minimizar o contágio e com isso evitar a sobrecarga do sistema de saúde e garantir o atendimento adequado aos contaminados que necessitaram de tratamento intensivo.
Países que demoraram mais para agir, como Itália, Espanha, França e Inglaterra, passaram por situações de colapso em determinadas regiões, tiveram grande número de mortes e aos poucos puderam dar início a superação do trauma causado pela pandemia e retomar uma situação de “nova” normalidade. Os que optaram, como Suécia, por um distanciamento social menos severo, acreditando que a manutenção do funcionamento pleno da economia e a livre circulação de pessoas configurar-se-ia em uma melhor estratégia, acabaram pagando um preço alto, tanto em termos de saúde pública, quanto pelo impacto na economia (que acabou afetada de forma tão ou mais severa do que os que optaram pelo fechamento).
A pandemia causada pelo Covid-19 inaugura uma nova fase histórica mundial. O discurso anticientífico, adotado por lideranças populistas emergentes, dá sinais de perda de legitimidade social, tanto entre simpatizantes do discurso neoliberal, que busca reduzir a ação do Estado em políticas de assistência, saúde e educação, quanto entre outros grupos sociais, diante da busca por respostas efetivas contra a doença.
O jornalismo feito com checagem e verificação factual ganhou maior relevância, desmascarando as redes de fake news, responsáveis pela produção massiva de “mortes por desinformação”, e colocando em cheque redes sociais incapazes de barrar a sua disseminação. Sociedades com maior capacidade de mobilização e coesão social, bem como governos com maior legitimidade, tiveram condições de enfrentar o problema com resultados melhores e mais expressivos do que países atravessados por disputas políticas anacrônicas ou governos pouco comprometidos com a verdade factual e o bem estar social. A ideia de enxugamento do Estado em nome do desenvolvimento econômico perdeu força, diante da necessidade socialmente reconhecida de sistemas de saúde pública e de proteção social frente ao colapso econômico.
No que se refere ao campo acadêmico, o impacto do vírus foi percebido de forma inconteste. De um lado, o fechamento de todo o sistema de ensino levou, especialmente o ensino universitário, a acelerar o processo de criação e implementação de mecanismos de ensino à distância. Utilizando plataformas de videoconferência e ferramentas de interação online, a atividade acadêmica tentou manter-se em movimento, tanto no nível da formação, quanto no da pesquisa. Por outro lado, a viabilização de eventos online acabou dando maior visibilidade a atividades que antes poderiam ocorrer somente dentro dos muros das universidades, ampliando o público interessado e com acesso a debates da maior qualidade por meio de “lives” e “webinários”, quase sempre gratuitos para quem dispõe de acesso à rede.
Além do enorme esforço despendido por docentes (que foram obrigados a rapidamente dominar estratégias de ensino não-presencial) e discentes (que foram obrigados a estabelecer novas rotinas e relações com as novas práticas de ensino), a pandemia tornou evidente o sucateamento no Brasil do ensino público. Enquanto instituições de ensino privadas conseguiam ter acesso a mecanismos informacionais e formação e suporte para sua comunidade acadêmica, as instituições públicas sofreram pela indisponibilidade dos mesmos recursos, questão que, num futuro muito próximo, aumentará mais ainda as desigualdades estruturais na sociedade brasileira.
Os negacionistas do vírus sofreram ao longo destes poucos meses reveses importantes. No campo político, governantes como Trump e Bolsonaro, que desde o início minimizaram o problema, preocupados com o impacto da crise econômica sobre seus mandatos, perderam rapidamente credibilidade e apoio. No campo acadêmico, o filósofo italiano Giorgio Agamben sofreu um duro revés sobre a credibilidade de seu modelo teórico, tratando a pandemia como uma invenção necessária para colocar em movimento um Estado de exceção [1]. A tentativa de Agamben em manter coerência com sua teoria do biopoder e do Estado de exceção permanente, se pode ter alguma utilidade para pensar contextos específicos de ação do aparato estatal totalmente à descoberto da normatividade democrática, como em favelas no Rio de Janeiro e regiões periféricas em outros lugares do país, mostrou-se inadequada, com graves consequências, em um contexto no qual a ação do Estado tem sido determinante para reduzir ou ampliar o número de mortes, a sobrecarga no sistema de saúde e as consequências econômicas da pandemia, e se relaciona com questões como a relativização da importância da democracia e os caminhos para o aperfeiçoamento institucional em áreas como a segurança pública e a justiça penal.[2]
A partir de Agamben, tem avançado o niilismo intelectual, que faz tábula rasa dos esforços para a reforma das instituições policiais e o aperfeiçoamento do processo penal, abrindo o caminho para críticas anti-modernas como as que tem assumido posições de comando no Brasil. É no mínimo surpreendente identificar as críticas de Agamben às políticas públicas de contenção da pandemia como sendo muito similares às da extrema direita alemã ou brasileira, que criticam medidas de isolamento social e de investimento público para evitar a falência econômica e a miséria, em nome das liberdades individuais, do livre mercado e da minimização da relevância das vidas perdidas pelo vírus.
Por outro lado, governos e instituições que assumiram, desde um primeiro momento, a gravidade do problema e a necessidade de lançar mão de ferramentas políticas e sociais à altura, obtiveram o reconhecimento público. Em um contexto geral de descrédito da atividade política e de crise das democracias representativas, não pode ser considerado de pouca relevância o que foi produzido nestes poucos meses em termos de reforço da legitimidade estatal para conduzir a crise.
Lideranças políticas de diferentes matizes no espectro político que agiram com responsabilidade, orientando suas tomadas de decisão pelo debate científico sobre o problema e reconhecendo a importância da liderança mundial da OMS para a condução da crise, contribuíram para recolocar o debate político em seu devido lugar, ou seja: fora da política, não há salvação. Organizações da sociedade civil destacaram-se também por sua capacidade de atuação em rede, tendo como base a solidariedade social para com populações vulneráveis e o enfrentamento das desigualdades aprofundadas pela pandemia.
Para além das diferenças na condução da crise entre governos responsáveis e governos populistas, há que destacar o peso de estruturas sociais marcadas pela desigualdade e a pobreza, que tornaram a América Latina o epicentro da pandemia, pela dificuldade de implementar políticas de isolamento social e de contenção da disseminação do vírus em comunidades carentes e cujos habitantes necessitam buscar diariamente seu sustento em mercados informais. Da mesma forma, a pandemia tornou evidente a desigualdade racial, afetando com muito maior amplitude pretos e pardos no Brasil e nos EUA.
Com relação às desigualdades de gênero, o isolamento social acabou produzindo uma sobrecarga de trabalho para as mulheres, já anteriormente afetadas pelo peso do trabalho doméstico não remunerado e o cuidado com os filhos e idosos de forma desigual. Sem a possibilidade de contar com o auxílio de diaristas ou de escolas infantis, as famílias de classe média foram obrigadas a equacionar as demandas do trabalho doméstico com a necessidade de dar conta das novas exigências do trabalho em home office. Possivelmente, o convívio intenso entre casais e o aumento expressivo da carga de trabalho doméstico e das demandas com o cuidado expliquem o aumento das ações de divórcio nesse contexto, assim como a baixa de produtividade no campo acadêmico das mulheres afetadas pelas atividades de cuidado com filhos pequenos e trabalho doméstico (se comparada a produção no período realizada por profissionais do sexo masculino), conforme tem apontado pesquisas sobre este tema em vários países.
Com tudo isso, é inegável que o contexto social impactado pela Covid-19 abre um novo período, com consequências importantes nos âmbitos político, econômico e social, em todo o mundo. Mais do que nunca, é fundamental que sejam produzidos diagnósticos sobre esse novo contexto, capazes de mapear a dimensão da crise nas diversas áreas da vida social, assim como prospectar saídas e identificar experiências bem sucedidas de superação e valorização da vida e da democracia.
(*) O presente artigo é a primeira parte de um trabalho mais amplo, intitulado Pandemia, Encarceramento e Democracia, que será publicado em coletânea com artigos de professores e colaboradores do PPG em Ciências Criminais da PUCRS, editada pela Ed. Tirant lo Blanch, que deverá estar pronta e disponível em agosto de 2020.
(**) Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo é Professor da Escola de Direito da PUCRS, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do INCT-InEAC, pesquisador de produtividade em pesquisa nível 1D do CNPq.
Pesquisadores contra violência policial nas favelas
Pesquisadores contra violência policial nas favelas
Nota de apoio da Rede Fluminense de Pesquisadores sobre Violência, Segurança
Pública e Direitos Humanos à ADPF 635 – Favelas pela Vida
Nós, pesquisadores da Rede Fluminense de Pesquisadores sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos declaramos nosso apoio à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 635, também conhecida como a “ADPF das favelas pela vida”. A Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos representa diferentes instituições de pesquisa sediadas no Estado do Rio de Janeiro com notório saber nesse campo temático e conta com a adesão de especialistas de diferentes áreas científicas e gerações, cujo conhecimento produzido ao longo das últimas décadas é reconhecido nacional e internacionalmente. A ADPF 635 é uma das mais importantes ações jurídicas já realizadas, que visa regrar o poder de polícia possibilitando transparência, responsabilização e prestação de contas públicas do seu exercício pelos agentes da lei, uma contrapartida obrigatória da investidura dos mandatos policiais no Estado Democrático de Direito. A ADPF é uma ação fundamental para conter o uso desproporcional de força pelas polícias do Rio de Janeiro contra as populações negras e pobres de favelas e comunidades em território fluminense. Por estas razões subscrevemos tanto os pedidosque constam em sua petição inicial, como também a decisão liminar proferida pelo Ministro Edson Fachin.
A escalada de mortes por intervenção de agentes do Estado chegou a patamares históricos únicos no Rio de Janeiro. Em 2018 foram registradas 1534 mortes por agentes do Estado e, no ano de 2019, esse número aumentou 18%, chegando a 1810 mortes. Do total de homicídios cometidos no Rio de Janeiro, o percentual das mortes que resultam de ações policiais e/ou militares também vem crescendo, passando de 14% até 2016 para 31% no ano passado, fato inaceitável em qualquer modelo mínimo de Estado Democrático de Direito. A taxa de homicídios por 100 000 habitantes do Rio de Janeiro não posiciona o estado entre os primeiros lugares frente ao conjunto federativo, mas a taxa de letalidade policial fluminense é a maior do país, respondendo por um quarto de todas as mortes por intervenção de agentes do Estado no Brasil.
As operações policiais são responsáveis pela maior parte dessas mortes. Realizadas de forma pouco transparente quanto à pertinência operacional dos seus fins, a propriedade técnica dos meios logísticos empregados e a adequação de seus modos táticos de atuação, tais ações não têm registronotacional oficial, o que as tornaria objeto de escrutínio público sobre suas bases legais e legítimas. Apenas recentemente, as polícias elaboraram instruções normativaspara a constituição de protocolos para a realização de operações, mas raramente são elas seguidas. Depois de três décadas de operações cotidianas, facções de tráfico de drogas e grupos de milícias dominam territórios de favelas em extensão ainda maior. Assim, ainda que as operações policiais estejam no centro das ações de segurança pública, não há evidências concretas de sua eficiência no combate à criminalidade, na asfixia dos mercados ilícitos e no desmonte dos domínios armados nos territórios populares, alvos das tais operações. De acordo com os dados oficiais divulgados sobre a produção policial, os “saldos operacionais” das operações policiais são inferiores aos produzidos pelos policiamentos ordinários. Porém, restam comprovados os seus efeitos de violência, contrários à prioridade de defesa da vida, que fundamenta toda e qualquer missão segundo a doutrina policial profissional. As violentas operações policiais realizadas em favelas ao longo de mais de três décadas foram incapazes de proporcionar maior segurança aos habitantes fluminenses. Elas têm contribuído para a escalada de violência que coloca populações inteiras sob o fogo cruzado entre a violência do Estado e de grupos criminais armados.
As populações negras, pobres e residentes em favelas e/ou periferias da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e demais municípios Fluminenses são as mais afetadas pelas operações policiais. São elas que têm suas áreas de moradia tratadas como territórios hostis, e seus corpos considerados alvos, expostos a todo tipo de arbítrio durante as ações policiais. Suas rotinas são duramente afetadas pelas incursões policiais que interrompemos serviços públicos dirigidos a essas populações, como escolas e postos de saúde. As polícias devem intervirem situações críticas e cenários adversos reduzindo riscos e perigos reais a que estão expostos os cidadãos e os próprios policiais em sua ação.
Não há missão policial legal e legítima que justifique expor pessoas ao risco de morte por arma de fogo no interior de suas próprias residências, como ocorreu com João Pedro, de 14 anos, adolescente negro morto por policiais enquanto brincava dentro de casa, em maio deste ano, no município de São Gonçalo, região que já registra 129 mortes por intervenção de agentes do Estado contra 120 registros de homicídios dolosos nos primeiros cinco meses de 2020. Nada justifica expor crianças ao risco de morte por arma de fogo a caminho da escola, como ocorreu com Marcos Vinicius, assassinado por policiais durante uma operação na Maré em junho de 2018. Nada justifica que policiais efetuem disparos de arma de fogo contra escolas, como os três projéteis de fuzil que atingiram a mataram a menina Maria Eduarda, dentro de uma escola municipal em Acari em março de 2017.
Durante o atual período de pandemia da Covid-19,quando os esforços policiais deveriam priorizar a vigilância sanitária, sua atribuição legal em convergência com outros agentes públicos para a defesa da vida, as operações policiais e as mortes por elas ocasionadas aumentaram no Rio de Janeiro, culminando na chacina de 15 de maio no Complexo do Alemão, com 12 mortes. Depois da liminar proferida pelo Ministro Edson Fachin no dia 5 de junho, o número de operações e, consequentemente, de mortes e feridos caiu de forma considerável. É, por isso, que a ADPF 635, ação que resulta da luta histórica dos movimentos de favelas e dos movimentos de familiares de vítimas e que conta também com apoio de ONGs, partidos políticos e órgãos estatais, vem em hora mais que oportuna. Somamo-nos, portanto, a esta mobilização pelo direito a vida das populações negras e residentes em favelas, solicitando aos demais ministros do Supremo Tribunal Federal que se sensibilizem e votem de forma favorável à ADPF 635.
Assinam:
- Adriane Maia – Fiocruz
- Alexandre Werneck, UFRJ.
- Ana Paula Miranda – UFF
- André Rodrigues – IEAR/UFF
- Avelina Addor – Unirio
- Bernardo Ferreira – UERJ
- Caíque Azael Ferreira da Silva – PPGP/UFRJ
- Carla Rodrigues – UFRJ
- Carlos Henrique Serra – UFF
- Carly Barboza Machado – Observatório Fluminense – da UFRRJ
- Carolina Botelho – PUC-RIO/ENCE/IBGE
- Carolina Grillo – UFF
- Cecilia Minayo – Fiocruz
- Cezar Honorato – UFF
- Clara Polycarpo – IESP/UERJ
- Clarice Peixoto- UERJ
- Claudia Barcellos Rezende – UERJ
- Cristiane Andrade – Fiocruz
- Daniel Cerqueira – IPEA
- Daniel Hirata – UFF
- Daniel Misse – UFF
- David Anthony Alves – UFF
- David Maciel de Mello Neto (PPGSA/UFRJ)
- Doriam Borges – LAV/UERJ
- Edinilsa Ramos de Souza – ENSP/FIOCRUZ
- Edson Miagusko – Observatório Fluminense – da UFRRJ
- Fatima Cecchetto – FIOCRUZ
- Fernando Rabossi – UFRJ
- Flavia Braga Vieira – Observatório Fluminense – da UFRRJ
- Francisco Carlos Teixeira – Cpda/UFRRJ
- Frederico Policarpo ((PPGJS/UFF)
- Hebe Signorini Gonçalves – UFRJ
- Helena Bomeny – UERJ
- Ignacio Cano – LAV/UERJ
- Jacqueline Muniz – UFF
- Joana Domingues Vargas – UFRJ
- João Trajano Sento-Sé – UERJ
- José Cláudio Souza Alves – UFRRJ
- Juliana Martins – FBSP
- Julita Lemgruber – CESEC
- Kathie Njaine – ENSP/FIOCRUZ
- Katia Sento Sé Mello – UFRJ
- Klarissa Almeida Silva Platero – UFF
- Lana Lage da Gama Lima – UFF
- Leilah Landim – UFRJ
- Lena Lavinas- Instituto de Economia da UFRJ
- Lenin Pires – UFF
- Leonarda Musumeci (CESeC)
- Lia Rocha – UERJ
- Luciane Patricio – UFF
- Luís Roberto Cardoso de Oliveira – UNB
- Luiz Antônio Machado da Silva (IESP/UERJ)
- Luiz Eduardo Bento de Mello Soares – UERJ
- Manuela L. Picq – Amherst College
- Marcelo Burgos – PUC/RJ
- Marcia Leitão – UENF
- Márcia Leite – UERJ, CEVIS, CIDADES
- Marcia Maria Menendes Motta – UFF
- Marco Antonio Perruso – Observatório Fluminense – da UFRRJ
- Marco Aurélio Goncalves Ferreira – Ineac-UFF
- Marcus Cardoso –UNIFAP
- Maria das Graças de Oliveira Nascimento – MIR-Movimento Inter-religioso do
Rio de Janeiro
- Mayalu Mattos – Fiocruz
- Michel Misse – UFRJ
- Miriam Abramovay – FLACSO
- Miriam Krenzinger (ESS/UFRJ)
- Miriam Schenker- Claves/Fiocruz
- Nalayne Pinto – Observatório Fluminense – da UFRRJ
- Orlando Alves dos Santos Junior – Ippur/UFRJ
- Pablo Nunes – CESEC/UCAM
- Palloma Menezes – UFF
- Patrícia Constantino -Claves/ENSP/Fiocruz
- Paul Amar – UCSB
- Paula Poncioni – UFRJ
- Paulo Baía – UFRJ
- Paulo D’Avila Filho – UERJ
- Pedro Cláudio Cunca Bocayuva Cunha – UFRJ
- Pedro Heitor Barros Geraldo – UFF
- Pedro Paulo Bicalho – UFRJ
- Raquel Willadino – Observatório de Favelas
- Renata Neder – CESEC
- Renato Sérgio Lima – FBSP
- Ricardo Gaspar Müller – UFSC
- Ricardo Resende Figueira – UFRJ
- Roberto Kant de Lima – UFF
- Rodrigo Andrade – UFF
- Rogerio Dultra dos Santos – UFF
- San Romanelli Assumpção – IESP-UERJ
- Silvia Ramos – CESEC/UCAM
- Simone G. Assis – Fiocruz
- Sonia Fleury – Fiocruz
- Thais Lemos Duarte – PPGS/UFMG