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Publicamos aqui matéria do site da FAPERJ com o coordenador do INCT/INEAC, antropólogo Roberto Kant de Lima, que fala sobre acesso a direitos constitucionais em tempos de coronavírus.

Confira a matéria no site da FAPERJ : http://www.faperj.br/?id=3978.2.8 ou leia abaixo.

 

 

Novo coronavírus evidencia dificuldade no acesso a direitos constitucionais

Juliana Passos

Filas para saque do Auxílio Emergencial na Caixa Econômica Federal iniciam cedo
em agência 
na Av. Paulista, em São Paulo (Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas)

Dados do contágio e óbitos de pessoas que contraíram o coronavírus têm evidenciado que, não só no Brasil, as regiões de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) ao redor do mundo registram um número expressivamente maior de mortes por coronavírus quando comparadas às áreas mais afluentes. Diante desse cenário, o antropólogo Roberto Kant de Lima não tem dúvidas da existência de duas ondas de contágio do coronavírus no Brasil. “As desigualdades cotidianas que observamos em nossas pesquisas agora se mostram de forma escancarada com a pandemia”, diz.

Coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT/InEAC), sediado na Universidade Federal Fluminense (UFF), o professor se dedica a investigar de que maneira o Direito é aplicado e entendido dentro das relações sociais em diversos âmbitos da sociedade a partir do olhar etnográfico, em que procura incorporar as perspectivas de todos os atores envolvidos, sejam eles os sujeitos do conflito, os agentes ou operadores das instituições. Ao longo dos anos, Kant de Lima, que recebe apoio da FAPERJ para a realização de suas pesquisas por meio do programa Cientista do Nosso Estado, tem se dedicado ao estudo de temas voltados para a Antropologia do Direito e da Segurança Pública. O professor também é membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC).

Estudioso do sistema penal do Brasil e dos Estados Unidos, o antropólogo argumenta que a aplicação do Direito no País tem ênfase no modelo repressor, próprio de sociedades hierárquicas ou personalistas, diferente do modelo americano que é baseado em um modelo normalizador, próprio das ideologias individualistas igualitárias. Uma das consequências do modelo brasileiro é a naturalização da visão de que direitos universais seriam privilégios. Kant de Lima cita como exemplo as primeiras medidas anunciadas para o combate ao coronavírus que pediam a lavagem das mãos e isolamento em casa. “Essas medidas estão limitadas àqueles que podem trabalhar de casa, possuem moradia digna e acesso a produtos de higiene”, argumenta. “Mais recentemente os governos começaram a adotar medidas mais abrangentes, com a distribuição de máscaras e auxílio emergencial, ainda que com uma série de dificuldades, como o empréstimo de máscaras nas filas para o saque”.

O pesquisador destaca que não se trata somente de uma falta de conscientização da população para a adoção das medidas preconizadas, mas de uma ausência do Estado em prover condições que universalizem o cumprimento das orientações. “Não falta conscientização das pessoas sobre seus direitos. Quem ficou sem renda, é autônomo, sabe que existe o auxílio emergencial. O problema é como acessá-lo”, enfatiza. Para Kant de Lima, é papel do Estado garantir que as pessoas tenham acesso ao auxílio emergencial, em vez de usar a ausência ou desatualização de determinados registros, como o Cadastro de Pessoa Física (CPF), como forma de negar direitos. “A Justiça Eleitoral é um exemplo de órgão que conseguiu aplicar a universalização. Não é algo de outro mundo. A cidade de São Gonçalo, por exemplo, teve uma experiência fantástica de um programa chamado ‘Poupa Tempo’ de retirada de documentos como Carteira Nacional de Habilitação [CNH] e RG [Registro Geral] em um só lugar”, lembra.

A explicação de Kant para a dificuldade de acesso da população mais vulnerável a direitos já previstos na Constituição é a existência de uma sociedade bastante hierarquizada, como consequência dos períodos de escravidão e imperialismo. “No Brasil, desde a nossa Independência, em 1822, vários obstáculos se colocaram diante desta sequência clássica: a Independência não nos tornou um regime republicano, mas Imperial e semidinástico, introduzindo a desigualdade jurídica entre os brasileiros; a economia continuou, até 1888, atrelada à escravidão, fazendo com que grandes segmentos da população fossem submetidos ao direito penal e processual penal, sem serem sujeitos de direitos civis; com a República, em 1889, perpetuou-se, até hoje, essa desigualdade jurídica, de que são exemplos indiscutíveis os muitos privilégios processuais penais e administrativos que estão enraizados na legislação ordinária do País e que contemplam certos segmentos sociais e membros do governo com direitos processuais desiguais, o que implica desigualá-los, também, civilmente”, escreveu o professor em artigo em coautoria com outro pesquisador do INCT/InEAC, Lenin Pires, na revista Enfoques, publicada em 2014.

Roberto Kant de Lima: “O Brasil é um País de privilégios. Saúde e Segurança  Pública
são direitos universais a que todos deveriam ter acesso”. (Foto: Claudio Salles/InEAC)

Um dos exemplos mais citados nesse sentido é a existência de uma população carcerária formada por 40% de presos preventivos que se tornaram permanentes, quando a lei determina que só deveriam estar presos aqueles com sentenças transitadas em julgado em terceira instância. “O Brasil é um País de privilégios. E aqui eu não estou falando de uma desigualdade econômica, social, mas uma desigualdade anterior, uma desigualdade jurídica. Saúde e Segurança Pública são direitos universais a que todos deveriam ter acesso”, analisa. 

Entre as atividades a que tem se dedicado Kant de Lima, que também é bacharel em Direito, ao longo de vários anos com o propósito de contribuir com a mudança dessa situação, estão diversos cursos em parceria com a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, da Escola Superior de Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (ESPM/RJ), alguns tribunais de Justiça. Essas parcerias fomentaram a necessidade da criação de um curso de graduação presencial de bacharelado em Segurança Pública, criado em 2012. No artigo “Antropologia, Direito e Segurança Pública: uma combinação heterodoxa”, publicado na revista Cuadernos de Antropología Social, em 2013, ele escreveu que a ideia do curso surgiu com o “objetivo de formação de quadros na perspectiva da segurança pública do ponto de vista da sociedade, que possam pesquisar, formular, propor, administrar e executar ações de segurança pública a partir das teorias democráticas e nos moldes de um estado democrático de direito”. Neste mesmo ano, foi criado na UFF o curso de Tecnólogo em Segurança Pública e Social, a distância, por meio de convênio da universidade com a Fundação Centro de Ciências e Educação Superior à Distância do Estado do Rio de Janeiro (Cecierj). Alguns anos mais tarde, em 2019, foi instituído, também na UFF, o curso de mestrado em Justiça e Segurança.

O site do INCT/INEAC reproduz aqui o artigo do sociólogo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, intitulado "O projeto bolsonarista não cabe na Carta de 88", publicado nessa quarta-feira, 13 de maio de 2020 no SUL 21 - https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2020/05/o-projeto-bolsonarista-nao-cabe-na-carta-de-88-por-rodrigo-ghiringhelli-de-azevedo/ . 

 

O projeto bolsonarista não cabe na Carta de 88 (por Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo)

 

Atravessamos mais uma semana amarga no Brasil. A pandemia ultrapassou os 10 mil mortos, e segue em curva ascendente, enquanto na maioria dos países que sofreram duramente com a covid-19 a curva de contaminados e mortos já está em declínio. Em breve chegaremos aos mil mortos por dia, sem que se vislumbre um mínimo de racionalidade e coordenação por parte do governo federal, que incrivelmente tem atuado para boicotar os esforços dos estados para conter a pandemia.

 

Enquanto esperamos para saber quando cairá o novo Ministro da Saúde, por sustentar uma posição científica sobre como reduzir as contaminações e mortes, o Presidente da República se aproveita da maior crise de saúde em muitas gerações no Brasil e no mundo, que fecha escolas e universidades, vitima servidores do sistema de saúde pública como nenhuma outra doença contagiosa de que se tenha notícia, para fomentar a crise política e rumar para o autogolpe contra as instituições que ainda lhe opõem alguma resistência: o parlamento, o Supremo Tribunal Federal e a mídia, representada pela Globo, Folha, Estadão, e a cada dia mais veículos de comunicação de massa.

Na eleição de 2018, é importante lembrar que não houve debate com o candidato vencedor. No princípio ele não comparecia por vontade própria, e depois que sofreu a facada, foi internado e não foi possível conhecer a fundo as suas ideias, em embate com os oponentes. Caso tivesse ido aos debates, Bolsonaro teria que dizer que pretendia liberar enorme quantidade de armamento e munição para a sociedade civil, sob o argumento de armar o cidadão para enfrentar o criminoso e o próprio Estado, em caso de necessidade.

Teria que mostrar que, embora nunca tenha trabalhado para qualificar e melhorar as condições de trabalho dos servidores da segurança pública, propunha que pudessem matar indiscriminadamente, cobertos por nova excludente de ilicitude, que dispensaria a ação de delegados, promotores e juízes no esclarecimento do fato. Teria que dizer que gostaria de ver derrubada a floresta Amazônica, transformada em pastagem, e dizimada a população indígena que não aceitasse abandonar a sua cultura. Teria que sustentar que, em caso de pandemia, tudo continuasse funcionando, para que a contaminação e as mortes não prejudicassem o funcionamento da economia, mesmo que isso ampliasse em muito os danos causados pela doença nas pessoas e no sistema de saúde pública. Se Bolsonaro tivesse ido aos debates, teria que dizer que para ele o melhor sistema de governo é o que tem um poder único, absoluto, que amolda e submete os demais poderes, para impor a sua vontade, como se Constituição fosse.

Sabemos agora que, caso seus filhos tenham praticado algum ilícito, os mesmos terão defesa intransigente do pai, mesmo que para isso tenha que demitir o Ministro da Justiça para trocar o superintendente regional do Rio de Janeiro, e com ele poder “resolver problemas” da família e dos amigos. Bolsonaro teria também que apresentar seu plano de transformação do ensino e da pesquisa no Brasil, que passava pelo estrangulamento das ciências humanas e sociais, e da própria Universidade Pública, para colocar no lugar algo que ainda não sabemos o que é, desestruturando um sistema de formação de graduação e pós-graduação que levamos décadas para construir, com todas as suas imperfeições, mas que vinha aumentando a cada ano a participação do Brasil na produção científica mundial, sem a qual não há futuro na sociedade do conhecimento.

Ora, sabemos que Bolsonaro defendia todas essas propostas quando candidato. Mas foram sustentadas por whatsapp, ou em programas de rádio e TV de jornalistas amigos, onde somente ele era o entrevistado, ou em momentos específicos nos quais produzia as suas performances de político miliciano, como quando ofendeu e desdenhou de uma deputada que não mereceria o estupro, ou quando homenageou um notório torturador em plena tribuna da Câmara. Não foram sustentadas no debate público, como um programa de governo, por um simples motivo: o programa do Bolsonarismo não cabe na Constituição de 88, é inconstitucional. Se o programa apresentado entre fotos de armas e fake news entra em choque com a Constituição Federal, qual o papel das instituições de controle?

Como devem agir a Câmara e o Senado, quando são encaminhadas, por medida provisória ou projeto de lei, o desvirtuamento do sistema de garantias para a população indígena, para as mulheres, para os negros, para os homossexuais, para as crianças e adolescentes, para os trabalhadores de todos os ofícios? Como deve agir o Supremo Tribunal Federal diante de atentados contra a ordem democrática, como gabinetes do ódio e fake news, montados no Palácio do Planalto e arredores? Como deve agir a imprensa, que não se confunde com os proprietários dos veículos de comunicação, formada por repórteres, jornalistas de opinião, apresentadores, atacados e ofendidos diariamente por cumprirem sua missão de dar visibilidade a tudo o que ocorre nas esferas do poder, pressuposto da democracia?

Muitos que votaram em Bolsonaro mas não aderiram ao projeto bolsonarista, já perceberam a fria em que se meteram. Contribuiu para isso a falta de visão de Lula e do PT, de que a ida de um candidato do partido para o segundo turno viabilizaria a concretização da onda bolsonarista. O fato é que, enquanto a classe média urbana se descola, e com ela a possibilidade de manter uma maioria do eleitorado ao seu lado, por outro lado leva Bolsonaro a tentar avançar com seu programa, que contém, além de tudo o que foi acima apontado, a garantia de imunidade e impunidade aos que estão ao seu lado, pela submissão das instituições de controle, através de demissões e afastamentos de servidores públicos interessados em agir de forma correta com todos, ou a escolha de carreiristas dispostos a tudo em troca de um espaço de poder.

Para isso, e tendo em vista todas as afrontas à ordem legal e constitucional, que poderiam levar a um afastamento, Bolsonaro aposta em dois grupos: o dos militares, bem servidos em espaços de poder nos ministérios, entre quadros da reserva e da ativa, e que com isso assumem partido pelo governo e produzem um curto circuito institucional inédito pós-88, e o dos deputados e senadores do chamado Centrão, grupo mais fisiológico no Congresso e disposto a trocar apoio por cargos e verbas, e com alguma afinidade ideológica ao bolsonarismo.

Há um terceiro grupo, também muito importante para o projeto bolsonarista de ocupação das instituições para desconstituir o programa de 88, e que garante seus sólidos 25% de apoio quase incondicional no eleitorado. Esse grupo é formado pelas igrejas neopentecostais, dominados pelo proselitismo político de pastores deputados, mas também por um campo muito amplo de eleitores que se convenceram de que somente Bolsonaro é capaz de enfrentar os problemas da segurança pública, fortalecendo as polícias e derrotando a criminalidade, por meio da legitimação do justiçamento, já praticado por milícias em certas áreas e por policiais em confronto em favelas e áreas de periferia, mas também pela liberação do armamento para a autodefesa da população civil.

Por incrível que possa parecer, essa narrativa encontra eco em vários níveis das corporações policiais, que se sentem acuados pela criminalidade e pelo crivo da opinião pública e das instituições de controle próprio de uma sociedade democrática. Bolsonaro é a esperança de mão forte contra o crime e impunidade para os atos praticados supostamente em nome da sociedade.

Para chegar ao seu propósito, Bolsonaro tem sido competente. Surfa na pandemia, afastando ministros populares e aparecendo como o único defensor da abertura da economia; garante o apoio dos militares, em uma estratégia muito próxima ao chavismo, de cooptação por cargos; costura o apoio parlamentar também pelo sistema de votos por cargos e verbas (nesse caso contrariando uma promessa de campanha); monta uma máquina de mobilização de desocupados e radicalizados para mostrar força; e busca um equilíbrio precário entre o setor “desenvolvimentista” dos ministérios militares e o neoliberalismo de Paulo Guedes para lidar com o mercado.

Se tudo isso é verdade, estamos diante de um ataque sistemático, orquestrado e violento ao estatuto a partir do qual se organiza a sociedade brasileira desde 88. Para que não ocorra a demolição anunciada, é preciso agir rápido. Não haverá grandes manifestações de massa contra Bolsonaro, pela pandemia e pela falta de lideranças políticas anti-bolsonaristas com credibilidade no debate público. Lula e o PT foram derrotados e hoje falam para um eleitorado cada vez mais restrito. Ciro se mostrou pouco capaz de disputar a esquerda e parecer confiável para o centro. Quem ocupa a cena política neste momento são os governadores, com destaque para Dória em São Paulo e Eduardo Leite no Rio Grande do Sul, mas também Camilo Santana no Ceará, Flávio Dino no Maranhão e, pela direita, para Ronaldo Caiado, padrinho político de Mandetta e médico como ele, que rompeu com Bolsonaro pela condução da pandemia, e Witzel, governando um estado que vai encontrar grande dificuldade para lidar com a pandemia e em choque frontal com o governo federal.

A cada dia um novo chamado é feito, no sentido de que a omissão não é mais tolerável. Estamos diante do momento mais importante da nossa geração, criada na abertura democrática, a maior pandemia com a maior crise política desde a democratização. Daqui em diante, cada um precisa assumir a sua responsabilidade, para a contenção do arbítrio e da desesperança que se seguirá. Em primeiro lugar, é preciso destituir Bolsonaro, que não reúne mais condições legais e políticas para permanecer na Presidência da República. Em segundo lugar, é preciso reunir as lideranças da sociedade civil, do empresariado, da igreja católica, da umbanda, dos grupos evangélicos democráticos, do judaísmo esclarecido, do agronegócio afetado por uma política externa errática e destrutiva, das carreiras de Estado impressionadas com a destruição institucional bolsonarista, e pensar em um novo projeto para o país, conectado com as bases lançadas em 88, mas também com um novo tempo, pós-covid, onde os desafios serão imensos para a inserção do país no mundo globalizado, com mais justiça social e políticas públicas eficientes e igualitárias. Ninguém mais pode dizer que não sabe o que está em jogo neste momento.

(*) Sociólogo e professor da Escola de Direito da PUCRS.

 

Nosso site reproduz aqui o artigo "Liberdades e igualdades em tempos de coronavirus", escrito por Roberto Kant de Lima e Pedro Heitor Geraldo,  respectivamente coordenador e pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC) . O artigo foi publicado nessa segunda , 11 de maio de 2020, no BLOG Ciência e Matemática do O GLOBO . 

Liberdades e igualdades em tempos de coronavirus

 

A pandemia que nos assola tem suscitado discursos aparentemente contraditórios entre, de um lado, a preservação da vida e de outro a preservação da economia. Quanto a este último, frequentemente tem-se enfatizado o fato de que o confinamento social, recomendado para preservar a vida, atingiria fortemente o exercício do direito à liberdade, que deveria ser respeitado como um direito essencial à democracia.

 

Essa dicotomia, como muitos apontaram, não se sustenta, mas faz parte de uma estratégia de confrontação discursiva própria de nossos tempos politicamente radicalizados. Uma cilada moderna construída através da linguagem da política e do direito que reduz e simplifica nossos dilemas contemporâneos obliterando-se a complexidade de nossa sociedade plural e multicultural. Assim, essas dissensões cognitivas simplificadas sobre o sentido mundano da vida moderna eclipsam pontos de vista distintos como os da política, do direito e da religião para produzir violentamente soluções simples para problemas complexos.

 

A intenção aqui é explicitar o significado nada evidente do déficit de direitos civis que sistematicamente assola nosso sistema jurídico-político desde sempre no que se refere à igualdade de direitos dos cidadãos e de suas liberdades. Nossas pesquisas há muito apontam que o sistema jurídico brasileiro naturaliza a segmentação da sociedade em partes desiguais não só em virtude de seu status econômico, o que seria próprio do sistema capitalista pautado, particularmente, pelo princípio das liberdades das escolhas individuais, mas também em virtude destes segmentos serem portadores de direitos desiguais, herança inusitada e estranhamente resiliente tanto de nosso passado imperial, como da escravatura, regime que equiparava os escravos a animais domésticos e/ou domesticados.

 

Nossas faculdades de direito ensinam que “cidadãos” são aqueles que exercem seus direitos políticos, assim retirando da cidadania aqueles que não votam e, portanto, até meados do século passado, todos os analfabetos e até hoje todos os jovens de menos de 16 anos. Ao proceder a essa exclusão, nosso sistema jurídico, repetindo incansavelmente que “a regra da igualdade é quinhoar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam”, enfatiza que seu papel não é o de distribuir igualmente os direitos pela população, mas de distribuí-los desigualmente, para não alterar a composição juridicamente piramidal da nossa sociedade, em nome da necessária manutenção de uma ordem naturalmente desigual das coisas

 

Ora, na equação jurídico-político-econômica liberal da sociedade capitalista ocidental, o direito iguala formalmente os diferentes, atribuindo-lhes um mínimo comum de iguais direitos, para que o mercado possa exercer sem maiores dilemas morais e éticos sua inexorável desigualação econômica, pois credita-se aos indivíduos a possibilidade e capacidade desses optarem entre trajetórias diferentes em um universo limitado de opções presentes no espaço público e no mercado. Acredita-se que tais cidadãos, igualados juridicamente, estariam em condições de competir, pelo seu mérito, para alcançar os lugares mais altos da estrutura social, ou mesmo, por liberdade de escolha, abdicar dessa opção em prol de outras formas alternativas de vida que não estejam associadas ä ascensão social, tornando-se um desviante do sistema. Ora, como isso não ocorreu assim tão simplesmente, uma série de outros direitos – políticos, sociais, etc., se juntam aos diretos civis para “mitigar” a desigualação que é da natureza do mercado.

 

Em nosso caso, entretanto, uma desigualação jurídica ainda mais consistente e presente ocorre antes da desigualação do mercado se instalar nas relações econômicas de nosso cotidiano, como que a opor-se ou impedi-la juridicamente. Evitar-se-ia, assim, a destruição das formas aristocrático-oligárquicas de desigualação, impedindo que as regras do mérito na competição do mercado prevaleçam, em prol da manutenção de privilégios que, se numa monarquia absoluta se fundavam no sangue azul e no direito divino dos reis, em uma república não fazem sentido algum.

 

É assim que nosso direito preza muito a proteção das liberdades civis, desigualmente distribuídas pela nossa pirâmide jurídica, em que poucos as podem exercer em sua plenitude, enquanto muitos nunca as tiveram em seu pleno exercício, como é o caso das populações que vivem confinadas em favelas, geograficamente delimitadas em regiões disputadas pelas facções e/ou pelas milícias no Rio de Janeiro.

 

Esse mesmo sistema não se sensibiliza nem se estrutura para distribuir igualmente os diretos civis pela população. Se esta fosse a sua preocupação, esse discurso de oposição às restrições da liberdade de ir e vir teria que encontrar sua limitação no exercício do direito à saúde pública, de viver e proteger-se de todos os cidadãos. O confinamento não tem apenas um lado de restrição negativa da liberdade individual, ou de proteção dos confinados pelo medo da contaminação mas, principalmente, também visa a proteção dos outros cidadãos em relação à expansão da contaminação viral e ao direito ao atendimento médico satisfatório para todos. Além do mais, os cidadãos, portadores todos de iguais direitos, não deveriam poder ser inflexivelmente e simploriamente segmentados entre aqueles que podem confinar-se e os que estão destinados a arriscar-se em movimento. As mídias digitais têm mostrado aglomerações em São Gonçalo e na Baixada Fluminense que atestam essa natural desigualdade entre os trabalhadores que têm que se movimentar e as classes médias e alta, que podem usufruir do privilégio de se confinar.

 

Ora, a preservação da vida – e da saúde - decorre de uma dimensão normativa negociada e escolhida entre os representantes da sociedade num documento constitucional que constituiria, suposta e antinaturalmente, os escopos das instituições, nossos artefatos sociais para “efetivar direitos”, como diriam os bacharéis em direito. Não é à toa que no documento que deveria constituir as finalidades mundanas das instituições brasileiras, já estava inscrito que as diferenças naturais dos sujeitos não são critérios legítimos para justificar um tratamento desigual por parte dos membros do Estado, pois são diferentes em sua igualdade, mas jamais desiguais em suas diferenças.

 

Não é demais notar que essa desigualdade de direitos naturalizada nessa situação pandêmica guarda semelhança com aquela existente desde sempre em nossa segurança pública, ao desprezar as atitudes de prevenção, próprias das sociedades igualitárias, padronizadas e normalizadas. Como na segurança pública, em que se espera que a política de guerra, ou combate ao crime na base do “tiro, porrada e bomba” extinga os conflitos da sociedade, aqui também são prescritos sucessivamente remédios para curar a praga disseminada pelo vírus. Em sociedades igualitárias as políticas preventivas que visam evitar ao máximo a ocorrência de transgressões são consideradas pelo menos tão relevantes quanto as repressivas; já nas sociedades de juridicamente desiguais, a repressão dos transgressores é a tônica da política majoritariamente implementada, sempre destinada, é claro, a reprimir ou extinguir os “bandidos”, isto é, “os outros” ou, no caso, os doentes.

 

Num sistema juridicamente individualista e igualitário, os indivíduos tendem a diferenciar-se identitariamente para reivindicar o exercício de direitos iguais para todos os diferentes cidadãos e há um mínimo comum de direitos compartilhados uniforme e igualmente por todos os diferentes indivíduos. Isso resulta em que o direito à liberdade de cada um está submetida ao respeito aos iguais direitos de liberdade do seu próximo. Mais, a liberdade de cada um se exerce fazendo opções dentro de um elenco limitado de possibilidades previamente definidas, não havendo nunca a possibilidade de se fazer escolhas que transgridam esse limite. É como os sanduíches do Mac Donald’s, não se pode comer bisnaga com queijo, salame e goiabada, como se pede na padaria da esquina. Ou seja, não se pode tudo, não há liberdade absoluta no sistema jurídico liberal-capitalista, um mundo no qual a liberdade de cada um se exerce até atingir a liberdade alheia.

 

Assim, a liberdade liberal não pode ser confundida com a ideia de liberdade seletiva e irrestrita do mundo das hierarquias e desigualdades naturalizadas, como ocorre no do Brasil. A liberdade liberal não é a libertinagem, pois, pelo contrário, exige uma enorme internalização e normalização das condutas dos cidadãos regidos por padrões e normas uniformes e igualmente distribuídas entre os segmentos da sociedade. Trata-se, como salientei, da escolha do Mc Donald's entre sanduíches já previamente dispostos entre as opções do menu e não o self service brasileiro que permite composições ilimitadas da sua liberdade de escolher comer salmão com jiló.

 

Já num sistema hierárquico, a individualização desiguala e leva ao exercício particularista do egoísmo e à desigualdade no exercício de direitos. É o caso brasileiro, em que a pandemia explicita que uns podem considerar-se, naturalizadamente e sem oposição mais livres que os outros, em detrimento da igualdade de todos. O exercício da solidariedade, o sacrifício do confinamento para o benefício de todos escapa de nossas mãos não só pelo tratamento do conflito com a lógica da guerra, como escreveu recentemente neste jornal Daniel Tabak1, mas também pelo reforço do exercício naturalizado da desigualdade de direitos, pela irresponsabilidade dos dirigentes que persistem na negação do risco, evitando o estímulo às soluções preventivas, e escolhendo o perigo e a morte (supostamente, sempre dos outros) como solução.

 

 

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L

Os antropólogos e pesquisadores vinculados ao INCT/INEAC, Lenin Pires e Wladmir Luz realizam nessa terça, às 14 horas, pelo projeto UFF NAS RUAS, uma Live cujo tema é Assessoria Popular, extensão e direitos numa perspectiva interdisciplinar. A transmissão será pelo Instagram @uffnasruas   

 

Nessa segunda, dia 4 de maio de 2020, o programa PARA SUA CIÊNCIA, apresentado pela antropóloga Izabel Nuñez (INCT/INEAC) traz o tema A GESTÃO DOS MORTOS EM TEMPOS DE PANDEMIA, com a participação da pesquisadora e também antropóloga Flavia Medeiros (INCT/INEAC). A live será transmitida na página do Instagram do INCT/INEAC - @inctineac, às 20h.

 

Nessa segunda, dia 4 de maio de 2020, o programa PARA SUA CIÊNCIA, apresentado pela antropóloga Izabel Nuñez (INCT/INEAC) traz o tema A GESTÃO DOS MORTOS EM TEMPOS DE PANDEMIA, com a participação da pesquisadora e também antropóloga Flavia Medeiros (INCT/INEAC). A live será transmitida na página do Instagram do INCT/INEAC - @inctineac, às 20h.

 

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